Sucessivas prisões de integrantes da facção matriculados em instituição na fronteira colocaram a Universidad Central Del Paraguay na mira do MP e da PF; Universidade nega qualquer ligação com o crime organizado e diz que não pode controlar a vida dos alunos
Era noite de 23 de março quando agentes da Senad (Secretaria Nacional Anti-Drogas do Paraguai) entraram em um lava-jato na cidade de Pedro Juan Caballero, na divisa com a cidade brasileira de Ponta Porã, e prenderam 14 integrantes do PCC que estavam reunidos no local. O alvo principal era o brasileiro Wesley Neres dos Santos, conhecido como Bebezão.
A operação feita em conjunto com a Polícia Federal brasileira seria mais uma a combater a atuação do crime organizado na fronteira, mas um detalhe chamou a atenção de autoridades paraguaias e brasileiras: Bebezão estava matriculado no curso de medicina da Universidad Central Del Paraguay (UCP). A identidade da instituição, apreendida pela Senad, garantia livre circulação no país vizinho.
Bebezão havia assumido a liderança do tráfico de drogas na região, estratégica para o crime organizado por servir como corredor de ligação entre a droga que vem dos países andinos e os grandes centros do Brasil. Ele foi o sucessor de Giovani Barbosa da Silva, o Bonitão, preso em 9 de janeiro na mesma cidade e expulso para o Brasil no dia seguinte após uma violenta tentativa de resgate.
O delegado Leonardo Nogueira Rafaini, chefe da Delegacia Regional de Combate ao Crime Organizado, da Polícia Federal no Mato Grosso do Sul, explica que Bebezão tinha a função de articular o tráfico de drogas na fronteira, cuidando da logística para enviar grandes remessas de entorpecentes para o Brasil. A carteirinha da UCP garantia ao criminoso uma espécie de salvo-conduto para circular livremente no Paraguai.
Na época, a UCP admitiu que Bebezão estava mesmo matriculado na instituição, assegurou que ele frequentava as aulas remotas, mas que não tinha conhecimento da relação dele com o crime organizado.
Na semana seguinte à prisão no Paraguai, policiais da Defron (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes na Fronteira) prenderam em Ponta Porã outro integrante graduado do PCC que usava uniforme da UCP no momento da prisão.
O preso era o motorista Cleverson Portelli, de 45 anos, conhecido como Tubarão. Segundo a Polícia, ele é considerado um dos principais líderes da facção na região de fronteira. Na casa onde foi preso com um comparsa, a Polícia achou camisetas de uniforme da UCP. Segundo o delegado Rodolfo Daltro, do Defron, a Polícia tinha informação de que o local funcionava como uma espécie de entreposto, onde a droga que vinha do Paraguai ficaria armazenada até o transporte para São Paulo.
Na manhã de 20 de maio, dois homens foram presos pela GCMFRON (Guarda Civil Metropolitana de atuação na Fronteira) na Rodoviária de Ponta Porã ao tentar embarcar em um ônibus para São Paulo com três quilos de maconha e um quilo de cocaína. Os dois também tinham ligação com a universidade.
O eletricista Milton Colangeli, de 50 anos, disse que veio do interior de São Paulo para se matricular em medicina na UCP. No momento da prisão, ele estava com documentos da faculdade com os requisitos para entrar no curso. Ele não soube explicar direito porque tinha escolhido aquela instituição, mas disse que foi indicado por um amigo.
O outro preso, que segundo a Polícia, comprou a passagem e iria acompanhar o transporte, era o porteiro Rafael Henrique dos Santos, de 33 anos, também do interior de São Paulo. Ele usava um uniforme da UCP e disse que era estudante de medicina na universidade. Os dois foram encaminhados para a Polícia Federal em Ponta Porã.
O súbito interesse de criminosos brasileiros pelo curso de medicina da UCP colocou a instituição no radar das autoridades dos dois países.
Para estudar medicina no Paraguai não é necessário vestibular ou alguma prova de ingresso como no Brasil. O valor das mensalidades, algo em torno de R$ 900, também é muito inferior ao cobrado nas instituições brasileiras que chegam a até R$ 10 mil. Por esta razão, milhares de estudantes brasileiros procuram as instituições paraguaias.
Apenas na região de Pedro Juan Caballero são 9 instituições que oferecem cursos de medicina. A Universidad Central Del Paraguay é uma das mais novas da região. Fundada em 2006, a instituição abriu a faculdade de medicina dez anos depois. Atualmente diz ter 8 mil alunos nas unidades de Pedro Juan e Ciudad Del Este.
A sede da UCP fica próximo do Palácio da Justiça e a quatro quarteirões da divisa com a cidade de Ponta Porã. No saguão de entrada, um luminoso dá as boas-vindas aos estudantes da turma de 2021. As inscrições para o segundo semestre estão abertas.
A informação para cursar é de que apenas é necessário pagar a matrícula – cerca de R$ 900. Surpreende a informação de que o pagamento pode ser feito por meio de boletos de uma empresa brasileira ou em uma conta bancária no Brasil. A informação é diferente do que consta no site da universidade de que só são aceitos pagamentos em Guaranis – moeda do Paraguai.
Em um vídeo institucional, a UCP orienta os alunos sobre o pagamento no Brasil. Embora o curso seja no Paraguai, as mensalidades podem ser depositadas na conta da empresa UCP Medicina PY Administração Gestão Acadêmica e Assessoria Eireli que está sediada na Avenida Paulista, em São Paulo. A empresa está registrada em nome de Aparecido Carlos Bernardo.
Bernardo apresenta-se como diretor-geral da UCP. É ele quem assina a carteirinha de estudante encontrada com o líder do PCC, Bebezão, mencionado no início desta reportagem. No documento, ele é identificado como Karlos Bernardo.
Na região da fronteira, a ascensão meteórica de Bernardo surpreende quem o conheceu no passado. Em menos de 10 anos, ele passou de um modesto dono de um blog regional para dono de uma fortuna que inclui aviões, lanchas, fazendas e mansões dos dois lados da fronteira. Bernardo chegou a estudar medicina, mas não concluiu o curso.
Em 2013, o empresário entrou como sócio da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidad Sudamericana também em Pedro Juan Caballero. Três anos depois, ele saiu da instituição e montou o curso de medicina na UCP. A abertura da nova faculdade aconteceu no mesmo ano em que foi assassinado Jorge Rafaat, que até então controlava o tráfico na região da fronteira.
A execução de Rafaat, em 15 de junho de 2016, teria sido comandada pelo PCC que pretendia ter o controle exclusivo do tráfico na fronteira e para executar o plano se aliou a um rival de Rafaat: Jarvis Pavão. Ele estava preso no Paraguai, mas mesmo assim comandava os negócios de dentro do presídio. Em 2017, Pavão foi extraditado e cumpre pena em presídio federal.
Dias depois da morte do traficante, sites de notícias do Paraguai registraram que Bernardo iria retomar o controle da Sudamericana que havia sido tomada de maneira violenta por Rafaat em razão do pagamento de uma dívida. Segundo a notícia, ele estaria acompanhado de uma das advogadas de Jarvis Pavão.
De acordo com policiais que preferiram não se identificar, criminosos já haviam sido identificados se matriculando na Sudamericana para circular livremente no Paraguai. Foi o caso de Oscar Ferreira Leite Neto e Mauro Andilo Ocampo Lopes, que estudavam medicina na Sudamericana, e desapareceram em 2017 em Pedro Juan Caballero.
Ambos eram acusados de matar e queimar os corpos do policial civil Anderson Celin Gonçalves da Silva e do pistoleiro Alberto Aparecido Roberto Nogueira, conhecido como Betão, um ano antes em Bela Vista (MS), na região da fronteira. Betão já havia trabalhado como pistoleiro do traficante Fernandinho Beira-Mar.
Fonte:R7